Harmonia em tempos de crise
Entrevista com Jean-Yves Leloup
Jornal A Tarde - Salvador, Bahia
PhD em psicologia transpessoal, doutor em teologia e filósofo, Jean-Yves Leloup é padre vinculado à Igreja Ortodoxa. Seu pensamento está muito além de qualquer tradicionalismo cristão. Escreveu mais de trinta livros publicados em diferentes idiomas, é estudioso dos textos sagrados, comentador e tradutor dos evangelhos de Tomé, Maria Madalena, Felipe e João. Também pesquisou similaridades existentes entre diferentes correntes espirituais do Ocidente e Oriente. Em seus escritos e conferências realizadas pelo mundo todo, ressalta a importância do mergulho diário em nosso interior, da descoberta do nosso verdadeiro "Ser" - o ser divino, da compaixão e a necessidade de levarmos uma vida mais amorosa e livre de preocupações.
A Tarde: A implanação de uma cultura de paz passa pela conquista da paz interior? É possível alcançar o estado de paz mundial mesmo que o homem ainda não tenha encontrado a harmonia interna?
Jean-Yves Leloup: Será que uma árvore pode produzir frutos saudáveis se as raízes não o são? É preciso primeiro trabalhar as raízes e as raízes da paz estão dentro de cada um de nós. Obviamente que se as raízes são sãs e bem colocadas na terra, os frutos também serão. A paz do universo é um florescer da paz cultivada dentro de cada ser humano. Mas os seres humanos têm muito a aprender com a natureza em relação à convivência em paz. Se tivéssemos a mesma calma das árvores, por exemplo, as coisas certamente seriam mais fáceis.
AT: Como fazer para conquistá-la?
JYL: A maneira mais eficiente é entrar em contato com o Sopro de Vida que nós respiramos e que está ao mesmo tempo no interior e exterior - a cada expiração permanecer um pouco no seu final porque ali existe um momento de calma e silêncio que é possível transmitir a todo o nosso ser. Para estar nessa calma, nessa paz, é preciso ter um espírito de paciência, um espírito que não julga nem espera alguma coisa, sobretudo que não espera que as pessoas sejam iguais à imagemque esperamos que elas tenham. Normalmente, as pessoas fazem uma imagem do outro e esperam que o outro esteja em conformidade com esta projeção ao invés de procurar vê-lo como ele realmente é. A paz é, na verdade, uma grande paciência...
AT: Fala-se muito no potencial tranquilizador da meditação. O senhor a pratica? O senhor acredita que ela é realmente uma ferramenta capaz de ajudar no alcance definitivo da paz interior?
JYL: Sim. E eu acredito que a meditação não deve ser feita apenas em determinado horário do dia, mas a toda hora, a todo minuto, porque meditar é estar presente a cada instante. Então, cada instante é um momento de meditação. Ela é a arte da atenção ao instante. Eu tento meditar a todo instante, mas minha prática está enraizada na tradição hesicasta que dá atenção à respiração, ao momento presente e à invocação do nome de Jesus. O nome de Jesus faz a ligação entre o céu e a terra, o invisível e o visível, a eternidade e o tempo. Quando estamos em uma situação difícil devemos invocar o nome de Jesus, que é mais do que um mantra. O mantra é o som que nos coloca em harmonia com o universo. O nome Jesus é uma Presença que nos coloca em contato com a Fonte do Universo.
AT: Em uma entrevista concedida a uma revista brasileira, o senhor fala que o objetivo do ser humano deve ser o de livrar-se do ciclo de reencarnações, aquilo que os hindus chamam de roda do Samsara, para atingir um estado de ressuscitação, que está além da necessidade de reencarnar e que constitui a grande libertação. Do que o homem ocidental precisa se libertar e em que consiste esta libertação suprema?
JYL: Quando perguntaram ao mestre indiano Ramana Maharshi para onde ele iria após a sua morte, ele respondeu: "Eu vou para lá onde eu sou/eu estou desde sempre..." A libertação é reencontrar o país que nunca deixamos. É a própria presença do "Eu Sou" dentro de cada um de nós. É isso que também chamaos de vida eterna, que é a vida antes, durante, depois e sempre. A vida eterna é uma dimensão de eternidade que está, na realidade, dentro do coração de todos nós. Lembrar deste "Eu Sou", da eternidade, é estar livre dos condicionamentos do tempo.
AT: O consumismo, na escala atual, é incompatível com a preservação ambiental ou ainda seria possível existir um consumismo sustentável que não agrida a natureza, mas possa atender às necessidades do homem?
JYL: Tudo depende daquilo que queremos consumir. E nós podemos descobrir que existem outras fomes e sedes dentro de nós: podemos vir a consumir, por exemplo, beleza e luz. Nós nos tornamos aquilo que nos alimenta, que utilizamos para nos nutrir. O homem é um espelho livre, ele reflete aquilo que ele quer refletir. Não é o desejo que é ruim, mas a orientação do desejo. O ser humano hoje em dia está um pouco desorientado. Ele não está voltado para uma luz, para uma paz que possa realmente curá-lo. Ele perdeu seu oriente, sua orientação. Devemos reencontrar esta orientação para o essencial. Nesse momento, as coisas poderão situar-se no seu devido lugar. Para encontrar esta orientação é preciso fazer as coisas com um pouco mais de consciência e amor - agir a partir do melhor de si mesmo, doar a melhor parte de nós mesmos. Se agirmos a partir disso, não só a vida ser´amelhor, mas o mundo todo também. A recomendação é a atenção a todo instante, estar presente ao momento presente dando o melhor de si e o melhor de nós mesmos é a consciência, o amor e a compaixão.
AT: O senhor disse certa vez que enxerga uma espécie de esquizofrenia e algo artificial no cenário político brasileiro. Porém, o senhor destacou que nosso país goza de riquezas, como recursos naturais em abundância, mistura pacífica de várias raças e uma cultura jovem e pulsante. Na sua visão, o que tem impedido o Brasil de florescer como uma potência?
JYL: Não falta nada ao Brasil, só falta tornar-se mais ele mesmo e ter mais confiança nas suas próprias riquezas. Acho que o Brasil não tem nada a aprender nem com a Europa, nem com os EUA. Eu acho que existem na cultura brasileira riquezas que lhe são próprias, ideais ao seu auto-desenvolvimento e estas riquezas podem constituir ensinamentos para a Europa e os EUA, que estão passando por dificuldades neste momento. Existe no Brasil uma energia de vida, que devemos cultivar e orientar. Creio que o país não perdeu contato com sua dimensão espiritual e isso é precioso para toda a humanidade. A riqueza da sua natureza e a juventude da sua cultura colocam o Brasil numa situação de superioridade material e espiritual, pois a cultura européia é velha e está um pouco cansada. Já a cultura brasileira, por seu contato com a natureza e pela influência de todas as culturas que passaram por aqui, pode ser realmente uma inspiração. É como se, entre os brasileiros, os benefícios da vida em contato com a natureza não tivessem sido completamente perdidos.
AT: Os conflitos de ordem religiosa no Oriente Médio, na África e aqui mesmo, na Bahia, onde tem ocorrido um tipo particular de confronto em que os líderes e seguidores de igrejas neopentecostais protagonizam ataques a membros das religiões de matriz africana, mostram que o homem ainda não compreendeu o verdadeiro significado da religiosidade?
JYL: É um sinal de que a religião ainda é algo externo ao homem. As pessoas usam Deus, a própria religião e a espiritualidade para afirmar seu poder e a sua vontade de obter ainda mais poder. O amor pelo poder tem estado mais presente que o poder do amor. As religiões existem para nos ajudarem a desenvolver e a compreender o poder do amor. O importante não é pertencer a uma determinada religião, mas através da religião ou outros meios quaisquer, transformar-se em um ser melhor. A melhor religião é aquela que nos torna seres melhores.
AT: O senhor fala que, de fato, a humanidade atravessa um período bastante crítico da História, mas que, por outro lado, estão brotando sementes de luz e consciência entre os homens. Que sementes seriam essas?
JYL: Nós escutamos o barulho do carvalho que é derrubado, mas não o barulho da floresta que está crescendo... Os gérmens da paz que falamos não são muito barulhentos. Tratam-se de associações, escolas, e pessoas que realmente têm o coração aberto, dedicam-se à construção de um novo mundo e não fazem muita propaganda. É através destas instituições e pessoas que uma nova floresta de paz está surgindo.
AT: Como foi sua conversão ao Cristianismo? O que ocorreu em Istambu, na Turquia, que o levou a desacreditar no ateísmo e adotar o modo de vida cristão?
JYL: Tive uma experiência de morte clínica em razão de um envenenamento. Durante esta experiência vivi uma realidade fora do corpo e do pensamento em que senti a presença do Ser e quando eu voltei ao corpo, a esta consciência de espaço/tempo, que é a nossa consciência ordinária, encontrei um patriarca ortodoxo que me lembrou a Presença do "Eu Sou" dentro de cada um de nós... Esse "Eu Sou" foi uma das palavras de Jesus Cristo que disse: "Antes de Abrãao ser, Eu Sou e ali onde eu sou/esstou, quero que vocês também sejam/estejam." Foi a partir deste momento que eu me interessei pelo Cristianismo. Queria ver como a Presença do "Eu Sou" que experimentei no momento da minha morte clínica, encarnou-se na História e como a Presença de Deus encarnou-se no ser humano. Foi por isso que a pessoa de Jesus Cristo me fascinou; descobri o Evangelho e tive vontade de vivê-lo.
AT: O senhor é um padre ortodoxo de um pensamento libertário, plural, tolerante e avançado. O que há de contemporâneo na Igreja cristão Ortodoxa?
JYL: Trata-se de buscarmos nas nossas raízes a seiva do nosso futuro. A tradição cristã ortodoxa é a raiz do cristianismo e tais raízes estão vivas. É importante que todas as formas de cristianismo conheçam as suas raízes, que é onde está a energia da vida nova.
AT: A UFBA está destacando-se no país em relação aos cuidados com o meio ambiente com a implantação do UFBA Ecológica, um programa de conscientização, educação e adoção de medidas sustentáveis e conservacionistas. O senhor, que costuma viajar muito pelo exterior, tem visto experiências similares em outras instituições de ensino?
JYL: Acho que o Brasil e a Bahia são bons exemplos para o resto do mundo, pois estão um pouco adiantados neste campo. Eu vi isso no Cairo, no Egito, mas não foi no contexto social ou universitário, foi num contexto de uma instituição religiosa.
AT: Na sua visão, qual foi a grande contribuição de Pierre Weil para a disseminação de uma cultura de paz no Brasil?
JYL: Acho que ele foi muito importante porque frequentou quase todas as universidades brasileiras e o ensinamento dele foi escutado não apenas pelas universidades holísticas que fundou, mas também por membros do governo e, sobretudo, por instituições que cuidam da educação das crianças. Para Pierre Weil, o futuro da paz passa pela educação das crianças. Acho que hoje em dia, no Brasil, muitas pessoas conhecem o trabalho que ele fez. Mesmo que as pessoas em geral não tenham conhecido o suficiente para seu trabalho, o método proposto por ele ainda pode ser útil não apenas para transformar a violência, mas para criar um Brasil mais harmônico.
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