segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Philip Morris leva Uruguai a tribunal do Banco Mundial
 
            O campo de batalha é minúsculo, talvez do tamanho de um maço de cigarros, para um gigante com receita líquida anual de US$ 25 bilhões fora dos Estados Unidos. Mas é no Uruguai, onde estão menos de 0,1% de todos os fumantes do planeta, que o "mundo de Marlboro" joga boa parte de seu futuro.

         A reportagem é de Daniel Rittner e publicada pelo jornal Valor, 24-01-2011.

         De forma inédita, a indústria do cigarro levou o governo de um país ao tribunal de solução de controvérsias do Banco Mundial, denunciando a violação do tratado bilateral de proteção de investimentos firmado entre o Uruguai e a Suíça. A divisão internacional da americana Philip Morris, com sede em Lausanne, contestou as políticas antitabaco implementadas pelo ex-presidente Tabaré Vásquez (2005-2010), um médico oncologista que continuou atendendo seus pacientes de câncer enquanto ocupava o cargo, e mantidas pelo atual presidente, José Mujica.

            Em três anos de vigência, as medidas adotadas no Uruguai contra o cigarro levaram 115 mil pessoas a abandonar o fumo e reduziram em 17% a quantidade de infartos agudos do miocárdio, segundo o governo. E colocaram em evidência uma nova discussão: há um momento em que o Estado precisa abrir mão do dever constitucional de proteger a saúde de seus cidadãos para respeitar direitos legítimos de investidores estrangeiros? Essa é a primeira vez que a indústria do cigarro recorre tão ostensivamente a acordos econômicos ou comerciais contra um país, o que pode causar uma reviravolta nas políticas públicas de combate ao tabaco, em caso de vitória da Philip Morris.

        "A estratégia é atacar um país pequeno para, na verdade, assustar os maiores que também queiram tomar medidas", diz o economista uruguaio Alejandro Ramos, consultor de entidades internacionais como a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas).

          Em 2006, o Uruguai se tornou o primeiro país das Américas a proibir o cigarro em ambientes coletivos fechados, fossem públicos ou privados. Ignorou, assim, a prática de instalar "fumódromos" em estabelecimentos comerciais e passou diretamente para o banimento do cigarro em áreas comuns. Hospitais e clínicas - da rede pública ou particulares - foram obrigados a dar tratamento gratuito a fumantes interessados em largar o vício. A propaganda teve veto total. Os impostos subiram e elevaram em mais de 200% o preço dos maços de 20 unidades, em termos nominais, para US$ 3,5.

             Não foi isso, no entanto, que levou a indústria a reagir. No início da década, o Brasil havia sido pioneiro ao vetar o uso de designações como "suave", "light", "baixo teor" e "ultralight" para as diversas marcas de cigarro. "A indústria explorava esses termos para promover uma versão enganosa de que um cigarro faz menos mal que outro, mas as pessoas mudam a forma de fumar para puxar mais nicotina", diz Tânia Cavalcante, uma das mais renomadas especialistas brasileiras no assunto, hoje secretária-executiva da Comissão Nacional para a Implementação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco.

           E o que aconteceu? Simples: a indústria deixou de usar essas designações, mas manteve a diferenciação de cores dos maços, com as quais cada cigarro do tipo "light" ou "baixo teor" já era identificado pelos fumantes. Por isso, os efeitos foram limitados.

           No Uruguai, o governo tomou uma decisão mais radical. De uma só vez, eliminou todas as variações de uma mesma marca de cigarro. A Abal Hermanos, subsidiária local da Philip Morris, se viu forçada a retirar do mercado 7 dos 12 tipos de cigarro que vendia. "No caso do Marlboro, significou que as variações Gold, Blue e Green, que representavam 40% das vendas da marca, saíssem do mercado", relata a multinacional americana, em um comunicado oficial.

            Restou apenas o Marlboro tradicional, sem a diferenciação de cores ou palavras. "Você pode proibir o uso de certos termos, mas não o uso de códigos de marketing que a indústria do fumo construiu ao longo de décadas para impor a aceitação social do cigarro", afirma Winston Abascal, diretor do Programa Nacional para o Controle do Tabaco do Ministério de Saúde Pública do Uruguai. "Basta lembrar que, nos filmes de Hollywood, os atores famosos sempre fumavam", disse Abascal ao Valor.

            A medida provocou a ira da Philip Morris. Para a empresa, afeta o valor de seus investimentos no país sem que haja qualquer compensação. Ela também alega que há estímulo à compra de cigarros contrabandeados ou falsificados e reclama que seus concorrentes no mercado uruguaio foram menos atingidos.

         Por isso, recorreu a um tratado vigente desde 1991 para levar o caso ao Centro Internacional para Arbitragem de Disputas sobre Investimentos (Ciadi), pedindo "a suspensão das três normas e uma substancial compensação financeira pelas perdas decorrentes delas". As outras duas normas contestadas já são bem conhecidas dos brasileiros, mas foram adotadas em escala maior no Uruguai: as advertências sanitárias cobrem 80% do espaço disponível para exposição da marca nos maços - 50% no Brasil -, e incluem o que a Philip Morris chama de "fotografias repulsivas e chocantes, como a de um bebê grotescamente desfigurado". Esse nível de cobertura dos maços, segundo a empresa, descaracteriza suas marcas e fere os direitos de propriedade intelectual.

            A briga do segundo menor país sul-americano - só perde em território para o Suriname - contra um Golias do mundo corporativo despertou a simpatia de organizações não-governamentais e ativistas, que acusam a indústria do cigarro de tratar o Uruguai como "rato de laboratório". As próprias autoridades em Montevidéu endossam a versão de que a Philips Morris, além de pressionar pela reversão das medidas tomadas pelo ex-presidente Vásquez em um momento de troca de governo, abriu o processo para desestimular outros países em desenvolvimento a fazer restrições do gênero.

          O esforço não é à toa. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 70% do consumo mundial de tabaco hoje em dia está fora dos países ricos. Em 1970, os emergentes representavam apenas 40% das vendas totais da indústria.

        "Não estamos procurando impedir o governo de proteger a saúde de seus cidadãos. As normas que questionamos são medidas extremas e ineficientes, que criaram um ambiente propício ao mercado negro", afirma a empresa, em nota. Abascal, o diretor do programa uruguaio, responde: "Os direitos econômicos são muito importantes e nós os respeitamos. Mas quando eles colidem com o direito à vida, a humanidade precisa definir que postura adotará."

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