quarta-feira, 7 de setembro de 2011
Educar para a celebração da vida e da Terra
Leonardo Boff
Teólogo, filósofo e escritor
Adital
Dada a crise generalizada que vivemos atualmente, toda e qualquer educação deve incluir o cuidado para com tudo o que existe e vive. Sem o cuidado, não garantiremos uma sustentabilidade que permita o planeta manter sua vitalidade, os ecossistemas, seu equilíbrio e a nossa civilização, seu futuro. Somos educados para o pensamento crítico e criativo, visando uma profissão e um bom nível de vida, mas nos olvidamos de educar para a responsabilidade e o cuidado para com o futuro comum da Terra e da Humanidade. Uma educação que não incluir o cuidado se mostra alienada e até irresponsável. Os analistas mais sérios da pegada ecológica da Terra nos advertem que se não cuidarmos, podemos conhecer catástrofes piores do que aquelas vividas em 2011 no Brasil e no Japão. Para se garantir, a Terra poderá, talvez, ter que reduzir sua biosfera, eliminando espécies e milhões de seres humanos.
Entre tantas excelências, próprias do conceito do cuidado, quero enfatizar duas que interessam à nova educação: a integração do globo terrestre em nosso imaginário cotidiano e o encantamento pelo mistério da existência. Quando contemplamos o planeta Terra a partir do espaço exterior, surge em nós um sentimento de reverência diante de nossa única Casa Comum. Somos inseparáveis da Terra, formamos um todo com ela. Sentimos que devemos amá-la e cuidá-la para que nos possa oferecer tudo o que precisamos para continuar a viver.
A segunda excelência do cuidado como atitude ética e forma de amor é o encantamento que irrompe em nós pela emergência mais espetacular e bela que jamais existiu no mundo que é o milagre, melhor, o mistério da existência de cada pessoa humana individual. Os sistemas, as instituições, as ciências, as técnicas e as escolas não possuem o que cada pessoa humana possui: consciência, amorosidade, cuidado, criatividade, solidariedade, compaixão e sentimento de pertença a um Todo maior que nos sustenta e anima, realidades que constituem o nosso Profundo.
Seguramente não somos o centro do universo. Mas somos aqueles seres, portadores de consciência e de inteligência, pelos quais o próprio Universo se pensa, se conscientiza e se vê a si mesmo em sua esplêndida complexidade e beleza. Somos o universo e a Terra que chegaram a sentir, a pensar, a amar e a venerar. Essa é nossa dignidade que deve ser interiorizada e que deve imbuir cada pessoa da nova era planetária.
Devemos nos sentir orgulhosos de poder desempenhar essa missão para a Terra e para todo o universo. Somente cumprimos com esta missão se cuidarmos de nós mesmos, dos outros e de cada ser que aqui habita.
Talvez poucos expressaram melhor estes nobres sentimentos do que o exímio músico e também poeta Pablo Casals. Num discurso na ONU nos idos dos anos 80 dirigia-se à Assembléia Geral pensando nas crianças como o futuro da nova humanidade. Essa mensagem vale também para todos nós, os adultos. Dizia ele:
A criança precisa saber que ela própria é um milagre, saber, que desde o início do mundo, jamais houve uma criança igual a ela e que, em todo o futuro, jamais aparecerá outra criança como ela. Cada criança é algo único, do início ao final dos tempos. E assim a criança assume uma responsabilidade ao confessar: é verdade, sou um milagre. Sou um milagre do mesmo modo que uma árvore é um milagre. E sendo um milagre, poderia eu fazer o mal? Não. Pois sou um milagre. Posso dizer Deus ou a Natureza, ou Deus-Natureza. Pouco importa. O que importa é que eu sou um milagre feito por Deus e feito pela Natureza. Poderia eu matar alguém? Não. Não posso. Ou então, um outro ser humano que também é um milagre como eu, poderia ele me matar? Acredito que o que estou dizendo às crianças, pode ajudar a fazer surgir um outro modo de pensar o mundo e a vida. O mundo de hoje é mau; sim, é um mundo mau. E o mundo é mau porque não falamos assim às crianças do jeito que estou falando agora e do jeito que elas precisam que lhes falemos. Então o mundo não terá mais razões para ser mau.
Aqui se revela grande realismo: cada realidade, especialmente, a humana é única e preciosa mas, ao mesmo tempo, vivemos num mundo conflitivo, contraditório e com aspectos terrificantes. Mesmo assim, há que se confiar na força da semente. Ela é cheia de vida. Cada criança que nasce é uma semente de um mundo que pode ser melhor. Por isso, vale ter esperança. Um paciente de um hospital psiquiátrico que visitei, escreveu, em pirografia, numa tabuleta que ma deu de presente:”Sempre que nasce uma criança é sinal de que Deus ainda acredita no ser humano”. Nada mais é necessário dizer, pois nestas palavras se encerra todo o sentido de nossa esperança face aos males e às tragédias deste mundo.
[Leonardo Boff é autor de "Cuidar da Terra-proteger a vida”, Record, Rio de Janeiro 2010].
FONTE:
Prisão intelectual
Por Carlos Zanetti
Quando falamos da utilização de animais como modelos experimentais, a discussão do que é ético ou não-ético depende da existência de um argumento, uma pergunta científica consistente. Se esta pergunta não é clara, ou é inexistente, toda a discussão ética fica invalidada.
Quando ouvimos argumentos contra e a favor da utilização de modelos animais, nasce geralmente uma angústia interna de descobrir qual é exatamente a linha que separa os argumentos éticos dos científicos. Evidentemente que, quando pensamos na maior parte das pesquisas que são feitas com a utilização de corpos e vidas de animais não humanos, realizadas desta forma pela força do hábito e pela força do poder econômico, forças estas que são a base do modus operandi da Ciência atual, sobra pouco a argumentar.
Mesmo que assumamos o especismo e dêmos total prioridade aos problemas da nossa própria espécie, a grande maioria dos projetos desenvolvidos com o ônus de vidas alheias é totalmente irrelevante quanto à resolução de nossas mazelas. Tomo aqui um exemplo clássico, a Doença de Chagas, para citar um problema de nosso país. Certamente é uma das áreas que mais absorveu recursos financeiros do sistema de financiamento público de pesquisa (via CNPq, FAPs, FINEP, etc). Grande parte desses recursos foi e é utilizada em projetos que utilizam animais de experimentação. Foram montados grandes centros de pesquisa e muita gente tem seus títulos de mestre e doutor relacionados a este assunto. Apesar de tudo isso e da infinidade de artigos científicos publicados, nada disso reverteu em qualquer tipo de auxílio aos doentes ou aqueles que vivem em condições de risco de contrair a doença. Nenhuma vacina foi desenvolvida para se prevenir o contágio, nem foram desenvolvidos novos tratamentos mais eficazes.
As únicas medidas que realmente têm impacto positivo sobre a saúde pública é a melhoria das condições de habitação, o controle do barbeiro e educação em saúde, além de melhor controle diagnóstico em bancos de sangue, evitando-se a transfusão de sangue contaminado. Se as agências financiadoras fossem menos coorporativas e fizessem um balanço de custo/benefício, muitos estudos calcados no modelo experimental deixariam de ser financiados.
Esse fato não é exclusividade da doença de Chagas, nem de nosso país. Este tipo de abordagem, justificada pelos interessados pelo fato de que o conhecimento gerado “é mais um tijolinho na construção do grande muro do conhecimento” e que “talvez” um dia os dados encontrados em animais – que na maioria das vezes nem sequer sofrem naturalmente dos problemas humanos para os quais servem de modelo – parece-me mais a construção voluntária de uma prisão intelectual, que isola seus participantes num mundo de esquizofrenia científica.
Por outro lado, existem situações mais críticas, onde a utilização do modelo animal é justificada pelos que o utilizam, através de uma pergunta médica/científica clara e pontual. O filme “Quase Deuses”, baseado em fatos reais, ilustra um bom exemplo disso. O paradigma médico que afirmava que corações não são órgãos que possam ser submetidos à cirurgia foi desfeito por dois pesquisadores da Universidade John Hopkins que aprenderam a realizar tais operações em corações de cães. Fizeram isso porque acreditavam que poderiam salvar a vida de um bebê, que sobrevivia em precárias condições de saúde em permanente internação hospitalar.
Pela visão médica daquela época, a criança estava condenada à morte por causa de um problema anatômico em seu coraçãozinho. Graças ao sacrifício de vários animais, primeiramente para mimetizar o problema no coração de um animal (a construção de um modelo experimental) e, em seguida, para corrigi-lo, a cirurgia foi realizada e a menina, salva. Esta história verdadeira e emocionante quebrou as regras da época e iniciou uma verdadeira revolução na Medicina. Nesta situação fica claro que pelo menos há uma justificativa científica para a utilização dos animais. Em casos como este fica aberta a discussão sobre a justificativa ética.
Quem dera, um dia, se somente casos deste tipo pudessem ser discutidos.
FONTE:
quinta-feira, 1 de setembro de 2011
terça-feira, 30 de agosto de 2011
Golfinhos que 'pescam' com conchas surpreendem cientistas
DA BBC BRASIL
Pesquisadores acreditam que um método de pesca com conchas pode estar se espalhando entre a população de golfinhos de Shark Bay, no Oeste da Austrália.
Os cientistas fotografaram golfinhos-nariz-de-garrafa do Indo-Pacífico (Tursiops aduncus) pegando conchas com o bico e as sacudindo no ar fazendo com que a água saísse de dentro delas, assim como os peixes que estavam escondidos ali.
O pesquisador Simon Allen, da Universidade de Murdoch, diz que o comportamento - raramente visto anteriormente - parece estar se tornando mais frequente na região. E enquanto outras técnicas de pesca usadas por golfinhos são geralmente ensinadas verticalmente, de mãe para filhos, o uso de conchas pode estar sendo passado entre golfinhos do mesmo grupo.
"Se realmente estamos testemunhando a difusão horizontal deste comportamento, eu assumiria que isso acontece quando um golfinho observa atentamente um companheiro golfinho pescando com conchas e aí imita o comportamento", diz Allen.
"Há uma fascinante possibilidade de que esse comportamento possa se espalhar diante de nossos olhos, ao longo de algumas pesquisas de campo, e de que possamos registrar essa difusão."
Comportamento raro
Os golfinhos de Shark Bay só haviam sido vistos levando conchas nos bicos cerca de cinco vezes durante 25 anos de pesquisas na região, mas ninguém havia conseguido explicar o comportamento.
Entre 2007 e 2009, pesquisadores da Universidade de Murdoch e da Universidade de Zurique observaram que os golfinhos estavam tentando pegar peixes escondidos dentro das conchas.
Durante os quatro meses de pesquisa de campo, em 2011, em Shark Bay, os cientistas conseguiram registrar o comportamento em pelo menos seis diferentes oportunidades. Agora, eles querem descobrir exatamente como os golfinhos usam as conchas.
"Ainda não sabemos se os golfinhos simplesmente seguem os peixes até que eles procurem refúgio em uma grande concha ou se os golfinhos chegam a mexer nas conchas anteriormente, talvez as virando com a abertura para cima com o objetivo de torná-las mais 'atraentes' para os peixes como um lugar de esconderijo", diz Allen.
FONTE:
POR UMA ÉTICA DO CUIDADO E DA RESPONSABILIDADE
Por Lourenço Zancanaro
A constatação da vulnerabilidade do mundo, da natureza e da vida humana compõe o grande legado de Hans Jonas, aponta o filósofo Lourenço Zancanaro na entrevista que concedeu por e-mail àIHU On-Line. Frente a essa fragilidade, “a única saída é o cuidado, a responsabilidade. Ao cuidarmos das gerações presentes, também estaremos cuidando das futuras”. Assim como Kant,Jonas também aposta na autonomia como norte para o agir:
“Somos autônomos para buscar o melhor e este deve ser sempre mais desejável que o pior. A autonomia é tomar posse da realidade como algo que precisa ser cuidado diante do excesso de poderes que a ciência nos dá. Somos chamados a deliberar sobre os novos podes que a tecnologia nos fornece”. Zancanaro esclarece que Jonas não se contrapõe à tecnologia ou à ética: “Uma boa ética pode fazer uma boa ciência e isto está no âmbito da deliberação em relação ao nosso poder”. A ética jonasiana é baseada nos limites, no cuidado, renúncia, previsão, prevenção e antecipação dos riscos “ante a possibilidade dos efeitos tecnológicos conduzirem o planeta a consequências imprevisíveis”.
Lourenço Zancanaro é graduado pelas Faculdades Associadas do Ipiranga, especialista em Estudos Brasileiros pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, especialista em Filosofia Brasileira pela Universidade Estadual de Londrina – UEL e mestre em Filosofia Social pela Pontifícia Univrersidade Católica de Campinas – PUC-Campinas. Cursou doutorado em Educação na Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, com a tese O conceito de responsabilidade em Hans Jonas. Autor deBioética – estudos e reflexões 3 (Londrina: CEFIL, 2002), leciona na UEL.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como analisa a importância do legado filosófico de Hans Jonas?
Lourenço Zancanaro – Hans Jonas é um filósofo que pensa a ética a partir das exigências do nosso tempo. Não critica a ética tradicional, apenas mostra que esta não deixou, nem poderia ter deixado, regras para as modalidades inteiramente novas do poder tecnológico, já que sempre analisou a ação humana voltada para o “agir próximo”. Sua preocupação se limitava à discussão da “qualidade do ato moral momentâneo” e não da previsão ou do tempo das gerações futuras agora ameaçadas pelo progresso técnico.
É uma reflexão sobre a ética dos limites, do cuidado, da renúncia, da previsão, da prevenção, da antecipação dos riscos, ante a possibilidade dos efeitos tecnológicos conduzirem o planeta a consequências imprevisíveis. A obra “The imperative of responsibility” – In search of an ethics for the technological age é básica para a compreensão do tema da responsabilidade.
Influências e “fenômeno da vida”
Sua trajetória filosófica recebe influência heideggeriana, além do liame entre os estudos históricos, especialmente a gnose, em seguida a filosofia da biologia e, finalmente, a ética de responsabilidade. O objeto de análise será a magnitude das consequências dos processos tecnológicos potencializados que afetam o agir.
Parte da constatação de que “se a natureza do agir mudou, também deverá haver mudanças na ética”. Portanto, o empreendimento objetiva a investigação do conceito de responsabilidade, seu significado para as tarefas atuais da humanidade, cada vez mais influenciadas pelas transformações tecnológicas que criam dioturnamente novos “espaços de ação”. Chama a atenção para os exageros do poder ilimitado da moderna tecnologia, defende a existência de uma eticidade para o mundo da natureza e declara que o fenômeno da vida necessita ser colocado novamente no seu lugar de honra.
O novo princípio de responsabilidade terá como objeto concreto de entendimento a possibilidade de perpetuação indefinida da humanidade no futuro que poderá estar comprometida pela degradação do meio ambiente, pelos perigos da energia nuclear, pelos avanços e possibilidades da engenharia genética e da biotecnologia. A humanidade encontra-se diante da “ameaça” dos novos poderes que ultrapassam a legislação e as prescrições morais. É esse vácuo que necessita ser preenchido pela reflexão, um vazio ético que é, para Jonas, “o vazio do atual relativismo dos valores”.
O excesso de poder da tecnologia se converteu em ameaça e perigo porquanto sua consistência está associada à ideia de “promessa, utopia, sucesso e bem-estar”. A utopia acompanha a técnica porque ela revela poder, onipotência e dominação. Os êxitos e os grandes avanços “afetaram a própria natureza humana” onde o “medo” e o “perigo” levantam a possibilidade de uma catástrofe. Portanto, se o homem tem “poder” e se este foi possível pelo avanço do conhecimento científico, a ética fundada na doutrina do ser abre espaço para dizer “não” ao “não ser” e isto significa “sim à vida”. Jonas deixou-nos um legado importante: o mundo é vulnerável, a natureza é vulnerável assim como a vida humana. Diante da vulnerabilidade a única saída é o cuidado, a responsabilidade. Ao cuidarmos das gerações presentes, também estaremos cuidado das futuras.
IHU On-Line – Quais são as suas maiores contribuições para o campo da educação?
Lourenço Zancanaro – No campo da educação, a teoria da responsabilidade ajudará a levantar questões que poderão contribuir para a filosofia da educação. Não obstante, não poderá referir-se à escola como a única responsável pelo sucesso ou fracasso da vida em sociedade. A educação perfaz a totalidade das ações, desde aquelas veiculadas pelos meios de comunicação, das ações públicas dos legisladores, do respeito intersubjetivo dentro do espaço público e da responsabilidade paterna como arquétipo de toda a responsabilidade.
Posto que a tarefa da educação no seu sentido amplo é dar uma formação global de conhecimentos que auxiliam a gestão da vida no mundo, a ética de responsabilidade poderá ser um bom instrumento na valorização da vida, do meio ambiente e de tudo que deve existir. Nesse sentido, as “obrigações” partem exatamente deste contexto e da análise das ações presentes. A responsabilidade para com o futuro terá como causa o apelo da situação presente. Se tivermos um “poder” de qualquer tipo, deste originar-se-á uma “obrigação” com o futuro. Não podemos comprometer o futuro, dando prioridade ao “pior” sobre o “melhor”, ao mais “ínfimo” sobre o mais “elevado”.
IHU On-Line – Em que medida o princípio de responsabilidade é, também, uma proposição que dialoga com a autonomia do ser humano?
Lourenço Zancanaro – O imperativo da responsabilidade – “Age de tal maneira que o efeito das tuas ações não coloquem em risco a possibilidade de vida no futuro” – representa o que há de mais fundamental na reflexão bioética. Somos autônomos para buscar o melhor e este deve ser sempre mais desejável que o pior. A autonomia é tomar posse da realidade como algo que precisa ser cuidado diante do excesso de poderes que a ciência nos dá. Somos chamados a deliberar sobre os novos podes que a tecnologia nos fornece. Portanto, a autonomia tem o sentido de deliberação sobre o uso das tecnologias, no sentido de análise das consequências futuras do seu uso. Jonas não é contra a tecnologia, nem muito menos a ética: uma boa ética pode fazer uma boa ciência e isto está no âmbito da deliberação em relação ao nosso poder.
IHU On-Line – Poderia comentar a proximidade entre o pensamento desse filósofo com o sistema kantiano, na medida em que Jonas postula um “imperativo ambiental”?
Lourenço Zancanaro – Referindo-se aos antigos imperativos, Hans Jonas destaca o kantiano – “Age de tal maneira que possas também querer que a máxima do teu agir se converta em lei universal da natureza” –; faz isso tecendo algumas observações.
A afirmação kantiana “que possas” expressa a razão, de acordo consigo mesma. Numa comunidade de seres racionais, a ação deve ser tal que, sem se contradizer, deixe-se apresentar como prática universal dessa comunidade. Para Jonas, a proposição “não é moral, mas lógica”. O “poder-querer” ou o “não poder-querer” exprime mais “compatibilidade (ou incompatibilidade) lógica, e não aprovação (ou desaprovação) moral”. Tal formulação é incompatível com o propósito da nova ética onde a esfera da ação não é mais o agir individual, mas coletivo. Considera que sua proposição não contém nenhuma autocontradição, pois está orientada para o domínio da esfera pública, onde os efeitos últimos das ações podem colocar em risco a possibilidade de vida futura.
O imperativo de Jonas não contém contradição de ordem racional porque está adaptado ao agir coletivo. A moralidade do querer consiste efetivamente em exercer um poder sobre aquilo que está em nossas mãos. Em Jonas está o caráter público e objetivo da responsabilidade direcionada à existência concreta contra a escolha privada e subjetiva em Kant. Em Kant, a universalização é hipotética; em Jonas, a responsabilidade é com as “políticas públicas” e o bem comum. Sève lembra que, em Jonas: “A política é o coração da ética de responsabilidade porque está endereçada muito mais à política pública que a conduta privada”. Todavia essa discussão mereceria um debate maior.
IHU On-Line – Quais podem ser as relações a serem estabelecidas entre ética ambiental e responsabilidade antropocósmica?
Lourenço Zancanaro – A ética tradicional está fundada em injunções que colocam em evidência os fundamentos e obrigações que justifiquem a obediência em princípios, tais como: “Ama teu próximo como a ti mesmo; não consideres jamais o próximo como um meio, mas como um fim em si”, Jonas mostra, ao apresentar a ideia de uma “natureza estável”, onde tudo o que era bom para o homem devia ser aceito sem dificuldade. A responsabilidade humana estava igualmente definida, a partir da condição dada pela natureza. A essência constante estabelecida pela natureza colocava o homem numa condição de dependência, a obrigação estava direcionada ao aperfeiçoamento da potencialidade natural, e os projetos, definidos de acordo com a norma eterna. A essência constante é um traço característico para a ação do homem metafísico que não pode ser considerado objeto de transformação pela técnica e, muito menos, objeto de responsabilidade futura. Resumimos a questão em três aspectos fundamentais.
Jonas mostra que as proposições do agir próximo são insuficientes e pergunta pelo seu significado moral ante as enormes transformações tecnológicas. Pela sequência de certos desenvolvimentos provocados pelo poder, a natureza do agir humano se transformou. Diante disso, faz-se necessário buscar novas vias interpretativas sobre as consequências desses poderes não mais restritos ao espaço da pólis, e limitados ao tempo futuro enquanto eternidade, mas como possibilidades a longo prazo. Esse entendimento requer adaptação aos novos tempos, uma vez que a ampliação do poder tecnológico modificou a natureza do agir. O argumento que exige transformação da ética está nos novos significados dos objetos culturais para o homem. Se são poderosos e causaram transformações na natureza do agir, logo o argumento é procedente.
Resignação
A visão “antropocêntrica” caracteriza-se pelo significado efetivo da reciprocidade do homem a partir das suas necessidades. Além do mais, ele é possuidor de uma essência constante que não pode ser considerada objeto de transformação. Finalmente, o espaço da ação no agir próximo é determinado pela ideia de perfeição quase imediata. A longo prazo, as consequências eram abandonadas ao “acaso, ao destino, à providência”. A ética se ocupava com “as situações repetitivas típicas da vida pública e privada”. Nesse contexto situa-se o conceito de “homem bom”, que respondia com virtude e sabedoria às situações próximas da vida pública e privada, de um lado, e, de outro, resignava-se ante o desconhecido. Mandamentos e máximas preocupavam-se com o imediato da ação e revelavam o campo de ação da moralidade, enfatizando a práxis cotidiana, o alcance imediato, e excluindo a previsão a longo prazo. “A moralidade ficava restrita ao estreito campo da ação”.
IHU On-Line – A partir da filosofia de Jonas, quais são as principais dificuldades em se propor uma ética dentro da civilização tecnológica em que vivemos?
Lourenço Zancanaro – Uma das principais dificuldades da teoria da responsabilidade está na sua fundamentação a partir da metafísica, especialmente quando recorre a pré-modernos. Fundar uma ética a partir do ser SER ou do ponto de vista metafísico ainda não foi suficientemente aprofundado e é o ponto onde são feitas as maiores críticas a ele. Todavia, Jonas faz isso propositadamente para chamar a atenção dos modernos sobre o quanto a vida foi banalizada e, sobretudo, de quanto deixamos de ser pastores do ser. A vida é tudo o que temos. O excesso de poder e a onipotência que a ciência nos dá poderão colocar em risco nossa existência e também a da natureza. Por isso a responsabilidade é com a vida, com sua continuidade para sempre. Nossa relação com o mundo deve ser de complementaridade.
Por Márcia Junges
“Somos autônomos para buscar o melhor e este deve ser sempre mais desejável que o pior. A autonomia é tomar posse da realidade como algo que precisa ser cuidado diante do excesso de poderes que a ciência nos dá. Somos chamados a deliberar sobre os novos podes que a tecnologia nos fornece”. Zancanaro esclarece que Jonas não se contrapõe à tecnologia ou à ética: “Uma boa ética pode fazer uma boa ciência e isto está no âmbito da deliberação em relação ao nosso poder”. A ética jonasiana é baseada nos limites, no cuidado, renúncia, previsão, prevenção e antecipação dos riscos “ante a possibilidade dos efeitos tecnológicos conduzirem o planeta a consequências imprevisíveis”.
Lourenço Zancanaro é graduado pelas Faculdades Associadas do Ipiranga, especialista em Estudos Brasileiros pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, especialista em Filosofia Brasileira pela Universidade Estadual de Londrina – UEL e mestre em Filosofia Social pela Pontifícia Univrersidade Católica de Campinas – PUC-Campinas. Cursou doutorado em Educação na Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, com a tese O conceito de responsabilidade em Hans Jonas. Autor deBioética – estudos e reflexões 3 (Londrina: CEFIL, 2002), leciona na UEL.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como analisa a importância do legado filosófico de Hans Jonas?
Lourenço Zancanaro – Hans Jonas é um filósofo que pensa a ética a partir das exigências do nosso tempo. Não critica a ética tradicional, apenas mostra que esta não deixou, nem poderia ter deixado, regras para as modalidades inteiramente novas do poder tecnológico, já que sempre analisou a ação humana voltada para o “agir próximo”. Sua preocupação se limitava à discussão da “qualidade do ato moral momentâneo” e não da previsão ou do tempo das gerações futuras agora ameaçadas pelo progresso técnico.
É uma reflexão sobre a ética dos limites, do cuidado, da renúncia, da previsão, da prevenção, da antecipação dos riscos, ante a possibilidade dos efeitos tecnológicos conduzirem o planeta a consequências imprevisíveis. A obra “The imperative of responsibility” – In search of an ethics for the technological age é básica para a compreensão do tema da responsabilidade.
Influências e “fenômeno da vida”
Sua trajetória filosófica recebe influência heideggeriana, além do liame entre os estudos históricos, especialmente a gnose, em seguida a filosofia da biologia e, finalmente, a ética de responsabilidade. O objeto de análise será a magnitude das consequências dos processos tecnológicos potencializados que afetam o agir.
Parte da constatação de que “se a natureza do agir mudou, também deverá haver mudanças na ética”. Portanto, o empreendimento objetiva a investigação do conceito de responsabilidade, seu significado para as tarefas atuais da humanidade, cada vez mais influenciadas pelas transformações tecnológicas que criam dioturnamente novos “espaços de ação”. Chama a atenção para os exageros do poder ilimitado da moderna tecnologia, defende a existência de uma eticidade para o mundo da natureza e declara que o fenômeno da vida necessita ser colocado novamente no seu lugar de honra.
O novo princípio de responsabilidade terá como objeto concreto de entendimento a possibilidade de perpetuação indefinida da humanidade no futuro que poderá estar comprometida pela degradação do meio ambiente, pelos perigos da energia nuclear, pelos avanços e possibilidades da engenharia genética e da biotecnologia. A humanidade encontra-se diante da “ameaça” dos novos poderes que ultrapassam a legislação e as prescrições morais. É esse vácuo que necessita ser preenchido pela reflexão, um vazio ético que é, para Jonas, “o vazio do atual relativismo dos valores”.
O excesso de poder da tecnologia se converteu em ameaça e perigo porquanto sua consistência está associada à ideia de “promessa, utopia, sucesso e bem-estar”. A utopia acompanha a técnica porque ela revela poder, onipotência e dominação. Os êxitos e os grandes avanços “afetaram a própria natureza humana” onde o “medo” e o “perigo” levantam a possibilidade de uma catástrofe. Portanto, se o homem tem “poder” e se este foi possível pelo avanço do conhecimento científico, a ética fundada na doutrina do ser abre espaço para dizer “não” ao “não ser” e isto significa “sim à vida”. Jonas deixou-nos um legado importante: o mundo é vulnerável, a natureza é vulnerável assim como a vida humana. Diante da vulnerabilidade a única saída é o cuidado, a responsabilidade. Ao cuidarmos das gerações presentes, também estaremos cuidado das futuras.
IHU On-Line – Quais são as suas maiores contribuições para o campo da educação?
Lourenço Zancanaro – No campo da educação, a teoria da responsabilidade ajudará a levantar questões que poderão contribuir para a filosofia da educação. Não obstante, não poderá referir-se à escola como a única responsável pelo sucesso ou fracasso da vida em sociedade. A educação perfaz a totalidade das ações, desde aquelas veiculadas pelos meios de comunicação, das ações públicas dos legisladores, do respeito intersubjetivo dentro do espaço público e da responsabilidade paterna como arquétipo de toda a responsabilidade.
Posto que a tarefa da educação no seu sentido amplo é dar uma formação global de conhecimentos que auxiliam a gestão da vida no mundo, a ética de responsabilidade poderá ser um bom instrumento na valorização da vida, do meio ambiente e de tudo que deve existir. Nesse sentido, as “obrigações” partem exatamente deste contexto e da análise das ações presentes. A responsabilidade para com o futuro terá como causa o apelo da situação presente. Se tivermos um “poder” de qualquer tipo, deste originar-se-á uma “obrigação” com o futuro. Não podemos comprometer o futuro, dando prioridade ao “pior” sobre o “melhor”, ao mais “ínfimo” sobre o mais “elevado”.
IHU On-Line – Em que medida o princípio de responsabilidade é, também, uma proposição que dialoga com a autonomia do ser humano?
Lourenço Zancanaro – O imperativo da responsabilidade – “Age de tal maneira que o efeito das tuas ações não coloquem em risco a possibilidade de vida no futuro” – representa o que há de mais fundamental na reflexão bioética. Somos autônomos para buscar o melhor e este deve ser sempre mais desejável que o pior. A autonomia é tomar posse da realidade como algo que precisa ser cuidado diante do excesso de poderes que a ciência nos dá. Somos chamados a deliberar sobre os novos podes que a tecnologia nos fornece. Portanto, a autonomia tem o sentido de deliberação sobre o uso das tecnologias, no sentido de análise das consequências futuras do seu uso. Jonas não é contra a tecnologia, nem muito menos a ética: uma boa ética pode fazer uma boa ciência e isto está no âmbito da deliberação em relação ao nosso poder.
IHU On-Line – Poderia comentar a proximidade entre o pensamento desse filósofo com o sistema kantiano, na medida em que Jonas postula um “imperativo ambiental”?
Lourenço Zancanaro – Referindo-se aos antigos imperativos, Hans Jonas destaca o kantiano – “Age de tal maneira que possas também querer que a máxima do teu agir se converta em lei universal da natureza” –; faz isso tecendo algumas observações.
A afirmação kantiana “que possas” expressa a razão, de acordo consigo mesma. Numa comunidade de seres racionais, a ação deve ser tal que, sem se contradizer, deixe-se apresentar como prática universal dessa comunidade. Para Jonas, a proposição “não é moral, mas lógica”. O “poder-querer” ou o “não poder-querer” exprime mais “compatibilidade (ou incompatibilidade) lógica, e não aprovação (ou desaprovação) moral”. Tal formulação é incompatível com o propósito da nova ética onde a esfera da ação não é mais o agir individual, mas coletivo. Considera que sua proposição não contém nenhuma autocontradição, pois está orientada para o domínio da esfera pública, onde os efeitos últimos das ações podem colocar em risco a possibilidade de vida futura.
O imperativo de Jonas não contém contradição de ordem racional porque está adaptado ao agir coletivo. A moralidade do querer consiste efetivamente em exercer um poder sobre aquilo que está em nossas mãos. Em Jonas está o caráter público e objetivo da responsabilidade direcionada à existência concreta contra a escolha privada e subjetiva em Kant. Em Kant, a universalização é hipotética; em Jonas, a responsabilidade é com as “políticas públicas” e o bem comum. Sève lembra que, em Jonas: “A política é o coração da ética de responsabilidade porque está endereçada muito mais à política pública que a conduta privada”. Todavia essa discussão mereceria um debate maior.
IHU On-Line – Quais podem ser as relações a serem estabelecidas entre ética ambiental e responsabilidade antropocósmica?
Lourenço Zancanaro – A ética tradicional está fundada em injunções que colocam em evidência os fundamentos e obrigações que justifiquem a obediência em princípios, tais como: “Ama teu próximo como a ti mesmo; não consideres jamais o próximo como um meio, mas como um fim em si”, Jonas mostra, ao apresentar a ideia de uma “natureza estável”, onde tudo o que era bom para o homem devia ser aceito sem dificuldade. A responsabilidade humana estava igualmente definida, a partir da condição dada pela natureza. A essência constante estabelecida pela natureza colocava o homem numa condição de dependência, a obrigação estava direcionada ao aperfeiçoamento da potencialidade natural, e os projetos, definidos de acordo com a norma eterna. A essência constante é um traço característico para a ação do homem metafísico que não pode ser considerado objeto de transformação pela técnica e, muito menos, objeto de responsabilidade futura. Resumimos a questão em três aspectos fundamentais.
Jonas mostra que as proposições do agir próximo são insuficientes e pergunta pelo seu significado moral ante as enormes transformações tecnológicas. Pela sequência de certos desenvolvimentos provocados pelo poder, a natureza do agir humano se transformou. Diante disso, faz-se necessário buscar novas vias interpretativas sobre as consequências desses poderes não mais restritos ao espaço da pólis, e limitados ao tempo futuro enquanto eternidade, mas como possibilidades a longo prazo. Esse entendimento requer adaptação aos novos tempos, uma vez que a ampliação do poder tecnológico modificou a natureza do agir. O argumento que exige transformação da ética está nos novos significados dos objetos culturais para o homem. Se são poderosos e causaram transformações na natureza do agir, logo o argumento é procedente.
Resignação
A visão “antropocêntrica” caracteriza-se pelo significado efetivo da reciprocidade do homem a partir das suas necessidades. Além do mais, ele é possuidor de uma essência constante que não pode ser considerada objeto de transformação. Finalmente, o espaço da ação no agir próximo é determinado pela ideia de perfeição quase imediata. A longo prazo, as consequências eram abandonadas ao “acaso, ao destino, à providência”. A ética se ocupava com “as situações repetitivas típicas da vida pública e privada”. Nesse contexto situa-se o conceito de “homem bom”, que respondia com virtude e sabedoria às situações próximas da vida pública e privada, de um lado, e, de outro, resignava-se ante o desconhecido. Mandamentos e máximas preocupavam-se com o imediato da ação e revelavam o campo de ação da moralidade, enfatizando a práxis cotidiana, o alcance imediato, e excluindo a previsão a longo prazo. “A moralidade ficava restrita ao estreito campo da ação”.
IHU On-Line – A partir da filosofia de Jonas, quais são as principais dificuldades em se propor uma ética dentro da civilização tecnológica em que vivemos?
Lourenço Zancanaro – Uma das principais dificuldades da teoria da responsabilidade está na sua fundamentação a partir da metafísica, especialmente quando recorre a pré-modernos. Fundar uma ética a partir do ser SER ou do ponto de vista metafísico ainda não foi suficientemente aprofundado e é o ponto onde são feitas as maiores críticas a ele. Todavia, Jonas faz isso propositadamente para chamar a atenção dos modernos sobre o quanto a vida foi banalizada e, sobretudo, de quanto deixamos de ser pastores do ser. A vida é tudo o que temos. O excesso de poder e a onipotência que a ciência nos dá poderão colocar em risco nossa existência e também a da natureza. Por isso a responsabilidade é com a vida, com sua continuidade para sempre. Nossa relação com o mundo deve ser de complementaridade.
Por Márcia Junges
FONTE:
Assinar:
Postagens (Atom)